Luis Miguel Cintra revisita uma vida inteira no cinema num livro de memórias a apresentar no Porto

“Comentários a uma Filmografia” junta quase 100 filmes e um olhar íntimo sobre décadas de representação

Há actores que atravessam o cinema como personagens. Luis Miguel Cintra atravessou-o como presença. Com voz, corpo e uma inteligência discreta mas marcante, tornou-se figura incontornável tanto no teatro como no grande ecrã. Agora, aos 76 anos, o actor e encenador olha para trás e organiza essa travessia num livro que é, ao mesmo tempo, inventário e confissão.

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“Luis Miguel Cintra: Comentários a uma Filmografia” é lançado este mês pelas Edições Caminhos do Cinema Português e será apresentado no dia 12 de Junho, no Cinema Trindade, no Porto, com a exibição especial de Uma Pedra no Bolso (1988), de Joaquim Pinto — escolha pessoal do actor para assinalar o momento.

Uma filmografia, muitas memórias

O livro nasceu de um desafio lançado pelo festival Caminhos do Cinema Português, que em 2024 homenageou o actor com o Prémio Ethos. A proposta era simples: revisitar os muitos filmes em que participou. A resposta de Cintra foi tudo menos banal — comentou um por um, com lucidez, ironia e emoção.

São quase 100 filmes, entre 1970 e 2022, percorrendo colaborações com nomes como Manoel de Oliveira, Pedro Costa, Solveig Nordlund, Maria de Medeiros, Joaquim Pinto, Paulo Rocha, João César Monteiro, entre muitos outros.

Foi precisamente com João César Monteiro que Cintra se estreou no cinema, em Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1970). Na introdução ao texto sobre esse filme, escreve:

“Quando comecei foi quase por acaso. Mas nada é por acaso a não ser os desastres e o primeiro amor.”

Um livro entre o íntimo e o político

Muito mais do que um exercício de memória, o livro revela-se uma viagem interior ao ofício da representação no cinema, feita por quem sempre assumiu que o seu lugar natural era o teatro.

Luis Miguel Cintra escreve com gratidão, mas também com ironia e alguma mágoa. Sobre o seu percurso no cinema, observa:

“Serei talvez o actor que em Portugal não ganhou quase nada com os filmes, porque nunca recusei um papel por ganhar pouco ou nada, e recusei sempre qualquer papel na televisão.”

Reflexões como esta pontuam o livro, que oscila entre o comentário técnico, o registo afectivo e a análise artística. Em Peixe Lua (2000), de José Álvaro Morais, por exemplo, lê-se:

“Marca a vida de uma pessoa fazer um filme assim (…) quase um filme de família com tantas histórias secretas.”

E quando escreve sobre O Gebo e a Sombra (2012), com Manoel de Oliveira, emociona:

“É um filme que surge na minha vida como uma incrível recompensa pela admiração e pela amizade incondicionais que para sempre associam o meu ofício de actor de cinema à sua obra.”

Uma vida contada em planos, falas e silêncios

O livro percorre não apenas as obras maiores, mas também momentos mais discretos — todos tratados com a mesma atenção. O tom, por vezes confessional, nunca cede ao sentimentalismo fácil. Em vez disso, temos um homem a pensar sobre o tempo, o trabalho e a memória, com a serenidade de quem sabe que o seu legado está construído não em prémios, mas em presenças.

No caso de Capitães de Abril (2000), de Maria de Medeiros, por exemplo, a memória do filme convoca a memória do próprio 25 de Abril. Cintra recorda-se de estar no Quartel do Carmo com o actor Luís Lucas, e escreve:

“Posso jurar que a atmosfera que se viveu não foi a de um doce e amável festejo com bandeirinhas. Nós estávamos cheios de medo de que aquilo não resultasse.”

Uma sessão para celebrar o cinema português… e um actor maior

A sessão de apresentação no Cinema Trindade, no dia 12 de Junho, é um momento para celebrar não só o livro, mas também a própria ideia de memória no cinema. Com a exibição de Uma Pedra no Bolso, de Joaquim Pinto, o evento recupera uma das muitas colaborações que marcaram o percurso de Cintra — um actor que, nas palavras de muitos, nunca fez um papel menor, mesmo quando o papel era pequeno.

O livro, segundo o próprio, “ficou uma espécie de livro de memórias, uma coisa meio sentimental da minha vida no cinema.”

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Felizmente para nós, ficou também um testemunho precioso de um dos maiores actores portugueses e do modo como viveu o cinema: com entrega, curiosidade e — acima de tudo — dignidade.

Cinema Batalha celebra Alice Rohrwacher e recebe matinés do Cineclube do Porto

Cinema Batalha, no Porto, anunciou uma programação diversificada para dezembro e janeiro, com destaque para uma retrospetiva da obra da realizadora italiana Alice Rohrwacher, sessões do Cineclube do Porto e uma exposição inédita do artista norte-americano Tony Cokes.

Um tributo à realizadora Alice Rohrwacher
A retrospetiva dedicada a Alice Rohrwacher inicia-se em dezembro e prolonga-se até fevereiro, destacando o trabalho da realizadora conhecido por explorar temas como a infância, a ancestralidade e a relação entre o rural e o moderno. Entre os filmes exibidos estão “Corpo Celeste” (2011) e “O País das Maravilhas” (2014), ambos reconhecidos pela crítica e premiados em festivais internacionais.

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Matinés históricas com o Cineclube do Porto
O Batalha retoma ainda a colaboração histórica com o Cineclube do Porto, ativo desde os anos 1940. As matinés quinzenais, aos domingos, começarão a 8 de dezembro com a exibição de “Os Domingos de Cybele” (1962), filme vencedor de um Óscar, que aborda a amizade entre um veterano de guerra e uma criança órfã. Estas sessões são uma oportunidade para revisitar momentos-chave da vida cultural do mais antigo cineclube português.

Uma exposição inédita de Tony Cokes
Além do cinema, o espaço acolherá a primeira exposição individual em Portugal de Tony Cokes, cujo trabalho combina texto, imagem e som para refletir sobre temas como o capitalismo, o consumo e a colonialidade. A exposição inclui uma peça inédita criada especialmente para o evento no Porto.

Outros destaques na programação
O ciclo “Mitologias: Lugares Sagrados, Tempos Míticos” traz filmes emblemáticos como “Cavalgada Heróica” (1939), de John Ford, e “Veredas” (1978), de João César Monteiro. Além disso, o cinema celebra o centenário do poeta Alexandre O’Neill com a exibição de “Um Filme em Forma de Assim” (2022), seguida de uma conversa com o realizador João Botelho.

Toda a programação pode ser consultada em www.batalhacentrodecinema.pt, uma oportunidade para os amantes da sétima arte aproveitarem uma oferta cultural única.