Poucos filmes ilustram tão bem a transformação do cinema de acção dos anos 80 como Rambo: First Blood Part II. Aquilo que começou, em First Blood, como um retrato amargo de um veterano traumatizado pelo Vietname acabou por se tornar um desfile musculado de explosões, frases lapidares e contagens de cadáveres dignas de banda desenhada. E, ao contrário do que muitos pensam, essa mudança não foi apenas estética — foi também o resultado de um verdadeiro braço-de-ferro criativo entre James Cameron e Sylvester Stallone.
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Quando Cameron foi contratado pela Carolco para escrever o argumento da sequela, o realizador ainda não era o nome lendário que viria a ser. Aceitou o trabalho “pelo dinheiro”, como admitiria mais tarde, mas tentou manter viva a dimensão psicológica que tornara First Blood especial. O seu guião, intitulado First Blood II: The Mission, mergulhava novamente no trauma de John J. Rambo, explorando o stress pós-traumático e o peso emocional da guerra, mesmo num contexto de missão de resgate em território vietnamita.
O problema é que Stallone tinha outra visão. Depois de, no primeiro filme, ter sido ele próprio a suavizar o argumento original — retirando mortes e tornando Rambo mais humano e vulnerável —, o actor decidiu que a sequela precisava de algo diferente. O público dos anos 80 queria heróis maiores do que a vida, e Stallone percebeu isso antes de muitos. O resultado foi uma revisão profunda do texto de Cameron, ao ponto de o próprio realizador admitir que apenas cerca de metade do seu guião chegou ao ecrã.
A versão final do filme mantém a premissa básica — Rambo regressa ao Vietname para resgatar prisioneiros de guerra —, mas abandona grande parte da introspecção psicológica em favor da acção pura. O Rambo pacifista, que no primeiro filme não matava ninguém, transforma-se aqui numa máquina de combate que elimina dezenas de inimigos. A mudança é tão radical que redefine a personagem para sempre, empurrando a saga para um território cada vez mais exagerado, que atingiria o auge em Rambo III.
As diferenças entre os dois argumentos são reveladoras. No guião de Cameron, Rambo surge internado num hospital de veteranos, isolado, claramente marcado pela guerra. Há mais atenção aos prisioneiros que ele vai salvar, com histórias pessoais e humanidade próprias. Existe até uma personagem secundária pensada como alívio cómico e apoio técnico — alegadamente escrita a pensar em John Travolta — que desapareceu completamente na versão final. Stallone optou por simplificar tudo isso, introduzindo antes a personagem interpretada por Julia Nickson e acelerando o ritmo rumo à carnificina.
Curiosamente, Cameron nunca renegou totalmente o trabalho feito. Pelo contrário: reconheceu que a experiência lhe permitiu reciclar ideias. Alguns dos temas rejeitados em Rambo: First Blood Part II acabariam por ressurgir em Aliens, nomeadamente a ideia de personagens que regressam a cenários traumáticos e lidam com as cicatrizes psicológicas da violência extrema. Onde Rambo se tornou super-herói, Ellen Ripley manteve-se humana.
Este choque de visões diz muito sobre a evolução do cinema comercial da época. Cameron queria complexidade emocional; Stallone queria impacto imediato. Ambos tinham razão à sua maneira. Rambo: First Blood Part II foi um sucesso estrondoso e ajudou a definir o cinema de acção musculado dos anos 80. Mas também marcou o ponto em que a saga deixou definitivamente para trás o comentário social que estivera na sua génese.
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Hoje, visto à distância, o filme funciona quase como um estudo de caso sobre como as estrelas de Hollywood podem moldar narrativas à sua imagem — e como um personagem pode ser completamente reescrito não por um realizador ou argumentista, mas pelo actor que o encarna. Rambo deixou de ser apenas um homem quebrado pela guerra para se tornar um ícone pop global. E essa transformação nasceu, em grande parte, das tesouradas de Stallone no argumento de James Cameron.


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