A adaptação cinematográfica do romance de Valter Hugo Mãe — realizada por Daniel Rezende — estreia esta quarta-feira e já emociona até o próprio autor.
Adaptar Valter Hugo Mãe ao cinema não é apenas um desafio: é, nas palavras do realizador Daniel Rezende, “uma tarefa praticamente impossível”. E é fácil perceber porquê. A escrita do autor português está carregada de poesia, emoção e humanidade — e traduzir esse universo para imagens exige mais do que técnica: exige sensibilidade, coragem e uma compreensão profunda do que faz da sua obra algo tão transformador.
Depois de ter construído uma carreira sólida como montador — foi nomeado ao Óscar e venceu o BAFTA por Cidade de Deus — e de ter assinado sucessos populares como Bingo e Turma da Mónica: Laços, Rezende sentiu que era altura de mergulhar num projecto mais íntimo, mais denso, mais desafiante. A escolha surgiu na pandemia, quando leu O Filho de Mil Homens e percebeu imediatamente:
“Ao terminar o primeiro capítulo, soube que este seria o meu próximo filme.”
A adaptação chega agora à Netflix e, segundo Valter Hugo Mãe, pode até superar o livro — elogio raríssimo vindo de quem tantas vezes é considerado inadaptável.
Da infância ao cinema: um ciclo que se fecha
Rezende conta que cresceu numa família distante da arte, enquanto ele preferia o escuro das salas de cinema às tardes de praia. Ao ver Os Goonies, teve uma epifania: queria provocar nas pessoas o mesmo deslumbramento que sentiu naquele dia. Décadas depois, recebeu mensagens de jovens que, após verem Turma da Mónica, decidiram estudar cinema — “foi como fechar um ciclo”, confessa.
O inesperado caminho da montagem
Apesar da ambição cinematográfica, formou-se em publicidade. Foi esse desvio que o levou a trabalhar com Fernando Meirelles e, mais tarde, a montar Cidade de Deus — o seu primeiro filme. A montagem acabou por definir o seu olhar artístico:
“No cinema, a montagem é onde se descobre quem é realmente um bom contador de histórias.”
Aprender a ouvir — e a liderar pelo exemplo
Trabalhar com nomes como Meirelles, Walter Salles ou Laís Bodanzky ensinou-lhe a subtileza da escuta. Para Rezende, um realizador precisa de saber exactamente para onde está a conduzir o filme, mas também de ser capaz de acender uma faísca que contagie toda a equipa. Esse espírito colaborativo molda agora a sua abordagem.
A adaptação de Valter Hugo Mãe: “trair por amor”
O Filho de Mil Homens apresenta uma escrita profundamente sensorial: não descreve apenas cenas, mas pensamentos, emoções, cadências internas. Rezende sabia que teria de reinventar.
“Às vezes, para ser fiel, é preciso trair por amor.”
O filme acrescenta cenas que não estão no livro e elimina outras — mas, paradoxalmente, quanto mais ressignificava, mais fiel se tornava ao espírito da obra.
Quando Valter Hugo Mãe viu o filme pela primeira vez, permaneceu em silêncio. Depois começou a chorar — e agradeceu.
“Disse-nos que estava feliz. Que era talvez um dos raros casos em que o filme podia ser melhor do que o livro.”
Família intencional: o centro emocional do filme
O romance aborda a ideia de “família” como ligação afectiva, e não apenas biológica. Crisóstomo — interpretado por Rodrigo Santoro — parte em busca de um filho e acaba por descobrir, pelo caminho, uma família construída pela escuta, pelo acolhimento e pelo amor.
“Uma família pode ser feita de muitas coisas”, diz Crisóstomo.
Rezende acredita profundamente neste conceito de “família intencional”: relações escolhidas, sustentadas por responsabilidade afectiva e pertença genuína.
Masculinidade reimaginada — e o olhar curativo de Santoro
Rezende conta que, em jovem, as suas referências de masculinidade eram Rambo e Rocky Balboa. Hoje, acredita que a arte tem o dever de propor novas formas de ser homem — mais abertas, sensíveis e empáticas.
A construção do personagem com Santoro exigiu subtileza:
“Às vezes, no livro, Crisóstomo parece demasiado discursivo. No filme, apostámos nos silêncios. E Santoro comunica tudo pelo olhar.”
Segundo o realizador, o actor tornou-se um “património afectivo”: alguém capaz de transformar uma cena apenas pela presença.
A cena do grito — e a solidão masculina
Uma das cenas mais marcantes mostra Crisóstomo a libertar um grito contido, entregue à natureza. É o retrato de um homem educado para reprimir tudo o que sente:
“O masculino aprende a não sentir, e quando sente, a não expressar. Quis representar isso sem palavras — só acção.”
O que o cinema português pode aprender — e ensinar
Rezende afirma sentir orgulho no cinema brasileiro (a entrevista original é brasileira), mas as reflexões sobre pluralidade, criatividade e resistência aplicam-se também ao cinema português. A arte é, afinal, um espaço de reimaginação colectiva.
Ser pai, ser homem, ser artista
Com um filho de 21 anos, o realizador confessa que a paternidade moldou a sua visão:
“Procuro construir uma relação baseada no diálogo. Questiono-o, mas também me deixo transformar por ele.”
Entre vinhos, amigos e uma pista de dança
Fora do cinema, Rezende gosta de noites de vinho e jogos cooperativos, de ir ao cinema como espectador — e continua apaixonado pelas pistas de dança, herança dos seus tempos de DJ.





