Há fenómenos que só Nicolas Cage consegue conjugar: espiritualidade, terror bíblico, excentricidade absoluta e a sensação permanente de que estamos sempre a dois segundos de um clássico de culto. The Carpenter’s Son, o mais recente capítulo da fase avant-garde da carreira do actor, chegou finalmente às plataformas digitais — e, ironicamente, a tempo do Natal. Nada como celebrar a época com um “filme de terror sobre Jesus” protagonizado por Cage como… José, o pai do futuro Messias.
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Realizado e escrito por Lotfy Nathan, The Carpenter’s Son é descrito oficialmente como uma história de guerra espiritual numa aldeia remota do Egipto romano, onde José, Maria e o jovem Jesus vivem sob ameaça constante de forças sobrenaturais. É uma premissa que parece saída de um manuscrito apócrifo filtrado por um autor de ficção grotesca. Ainda assim, na prática, funciona como o que Hollywood sempre soube fazer bem: uma fábula sombria sobre fé, identidade e tentação, com uma reinterpretação radical da infância do Cristo bíblico.
O filme acompanha a família enquanto uma paragem num pequeno povoado desencadeia o que se revela ser um confronto directo com o Mal. A responsável por mover as peças é uma jovem misteriosa, interpretada por Isla Johnston, que tenta seduzir Jesus para um mundo proibido — um mundo que José reconhece instintivamente como perigoso. O receio transforma-se em terror quando fenómenos violentos e inexplicáveis começam a seguir o rapaz, até que a verdade é revelada: a “nova amiga” de Jesus tem um nome que dispensa apresentações. Satanás — ou melhor, “Suhtan”, como se tornou viral graças ao trailer — surge aqui numa forma infantil e profundamente inquietante.
No centro desta narrativa está um Nicolas Cage que continua a refinar a sua carreira como sumo sacerdote do cinema arriscado. Depois de títulos como Mandy, Pig, Dream Scenario e o recente Longlegs, Cage demonstra novamente que não tem medo de mergulhar em personagens que desafiam convenções e que, muitas vezes, vivem entre o ridículo e o sublime. Desta vez, interpreta um José consumido pelo pânico e pela impotência, tentando proteger um filho cujo destino parece inevitavelmente maior do que a sua própria compreensão.
Curiosamente, apesar da premissa ousada e do nome de Cage no topo do cartaz, The Carpenter’s Son passou despercebido quando estreou. O filme não recebeu a atenção que títulos mais comerciais do actor têm conquistado nos últimos anos. Agora, disponível em plataformas como Apple TV, Prime Video e Fandango, tem finalmente a oportunidade de encontrar o público que lhe faltou no circuito tradicional — e talvez de se tornar o fenómeno “meme-bíblico-sensação” para o qual nasceu.
Em paralelo, o filme toca também numa sensibilidade muito peculiar da época: a reinvenção irreverente de narrativas sagradas. Nathan não persegue blasfémia gratuita, mas um thriller espiritual deliberadamente desconfortável, onde a proximidade de Jesus à humanidade é confrontada com a inevitabilidade da sua mitologia. Noah Jupe interpreta um Messias adolescente cheio de dúvidas, presságios e medo — um contraste poderoso com o imaginário canónico que conhecemos.
No meio disto tudo, há ainda FKA twigs como Maria, oferecendo uma performance austera e magnética, e uma atmosfera que oscila entre o terror psicológico, o misticismo ancestral e um humor involuntário que emerge sobretudo graças à própria existência de um filme onde Jesus é assombrado por uma versão infantil do Diabo.
Com a chegada do filme ao streaming, o culto pode finalmente consolidar-se. E sim, é quase garantido que a pronúncia “Suhtan” vá ecoar internet fora como o novo grito de guerra dos fãs de Cage — a meio caminho entre a religião e o absurdo absoluto.
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Se The Carpenter’s Son será a escolha perfeita para acompanhar o espírito natalício? Isso fica para cada espectador decidir. Mas, para quem aprecia a vertente mais destemida, ousada e deliciosamente estranha de Nicolas Cage, este pode muito bem ser o filme de Natal mais subversivo do ano.



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