Há actores que pertencem ao cinema. E depois há Marcello Mastroianni, que pertence à própria ideia de sedução, mistério e liberdade que o cinema tantas vezes tenta capturar. É essa figura — simultaneamente luminosa e inalcançável — que o documentário Marcello Mastroianni: Irresistivelmente Livre procura desvendar, numa estreia marcada para quinta-feira, às 22h55, na RTP2.
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A proposta é sedutora: desmontar o mito sem o destruir, compreender o homem sem o aprisionar numa narrativa fácil. Afinal, quem era realmente Mastroianni quando as câmaras deixavam de filmar? Que relação mantinha com a imagem de galã latino que o mundo lhe impôs — uma espécie de máscara dourada que ele próprio, discretamente, tentava afastar?
O documentário parte precisamente desse confronto entre persona e identidade, revelando um actor cuja aparente leveza escondia camadas de sensibilidade, contradição e indisciplina emocional. Não apenas o protagonista dócil e indolente que Fellini transformou em símbolo universal do desencanto moderno, mas um homem inquieto, determinado a não ser reduzido à perfeição dos seus traços ou ao charme que todos reconheciam antes mesmo de ele entrar em cena.
Os anos 60, com La Dolce Vita, elevaram-no ao estatuto de estrela absoluta. Naquela icónica imagem de Marcello a caminhar pela Via Veneto ao lado de Anita Ekberg, cristalizou-se uma ideia de masculinidade mediterrânica que o ultrapassou, quase como uma lenda que se escreve por si própria. Mas Mastroianni, homem de olho doce e espírito irónico, resistiu sempre à tentação de acreditar na sua própria mitologia.
Não era cínico, nem desencantado. Pelo contrário: transmitia a sensação de que a vida, demasiado séria para ser levada tão a sério, precisava de ser vivida com prazer, humor e, sobretudo, liberdade. Daí o título do documentário — Irresistivelmente Livre — que evoca não apenas o actor, mas também o ser humano que se recusou a deixar-se aprisionar pelos rótulos de uma indústria que fazia dele o seu ícone ideal.
O que o filme da RTP2 oferece é a oportunidade de reencontrar Marcello para lá da superfície: os bastidores, as fragilidades, a inteligência subtil e a permanente ambiguidade de um artista que parecia flutuar entre os papéis, como se cada personagem fosse apenas mais um ponto de partida para questionar o mundo e a si próprio.
Através de imagens de arquivo, depoimentos e uma construção narrativa que honra tanto o mito como o homem, o documentário traça o retrato íntimo daquele que muitos consideram o actor italiano mais complexo da sua geração — imprevisível, elegante e cheio de uma humanidade luminosa, difícil de capturar mas impossível de esquecer.
Na noite de quinta-feira, a RTP2 convida-nos a olhar novamente para Mastroianni. E a descobrir que, por trás da maquilhagem, do sorriso preguiçoso e da aura eterna de La Dolce Vita, existia um homem que passou a vida inteira a tentar ser apenas isso: ele próprio.



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