A Cinemateca Francesa tomou a decisão controversa de cancelar a exibição de O Último Tango em Paris (1972), uma obra icónica mas também profundamente polémica. O filme, realizado por Bernardo Bertolucci e protagonizado por Marlon Brando e Maria Schneider, estava agendado para ser exibido a 15 de dezembro como parte de uma retrospetiva dedicada a Brando. Contudo, protestos de associações feministas e preocupações de segurança levaram à suspensão da sessão, que incluiria também um debate sobre as controvérsias em torno da produção.

Uma Decisão Marcada por Protestos e Controvérsia

A cena mais polémica do filme — uma sequência de violação simulada, gravada sem o consentimento prévio de Maria Schneider — tem sido amplamente criticada ao longo dos anos, especialmente após o surgimento do movimento #MeToo. Schneider, que tinha apenas 19 anos na altura das filmagens, revelou mais tarde que a cena foi planeada pelo realizador e por Brando sem o seu conhecimento. “Eu senti-me violada, tanto por Marlon como por Bertolucci”, afirmou Schneider numa entrevista antes de falecer em 2011.

Associações feministas, atrizes e figuras públicas apelaram à Cinemateca para cancelar ou, pelo menos, contextualizar a exibição do filme, denunciando a falta de respeito para com Schneider. Judith Godrèche, uma figura de destaque do movimento #MeToo em França, criticou duramente a instituição, apelando à inclusão de uma mediação que abordasse o trauma vivido pela atriz.

A Cinemateca e a Responsabilidade de Contextualizar

Inicialmente, a Cinemateca planeava acompanhar a exibição de O Último Tango em Paris com um debate sobre as questões éticas e sociais que o filme levanta. Contudo, Frédéric Bonnaud, diretor da Cinemateca, anunciou o cancelamento da sessão numa declaração oficial, citando preocupações de segurança. “Somos uma cinemateca, não um acampamento entrincheirado”, afirmou, referindo-se à crescente hostilidade e à potencial ameaça à segurança dos funcionários e do público.

A decisão surge numa altura sensível, em que o julgamento de Christophe Ruggia, acusado de agressão sexual à atriz Adèle Haenel quando esta era menor, está em andamento, reacendendo debates sobre a violência e o abuso no meio cinematográfico.

O Legado Polémico de O Último Tango em Paris

Lançado em 1972, O Último Tango em Paris foi imediatamente recebido com reações extremas, desde aclamação como obra-prima artística até repúdio devido à sua representação explícita de sexualidade e violência. A cena em questão levou a que o filme fosse classificado como pornográfico e condenado por diversas instituições, incluindo o Vaticano. Décadas depois, a sequência tornou-se um símbolo das práticas abusivas de algumas produções cinematográficas.

Jessica Chastain, uma das figuras de destaque do movimento #MeToo, criticou o filme em 2017: “Ver uma jovem de 19 anos a ser violada por um homem de 48 anos e saber que isso foi planeado deixa-me doente.” Estas palavras refletem um sentimento generalizado de que as práticas de rodagem da época muitas vezes ignoravam os direitos e a dignidade das mulheres.

A Reação da Indústria e o Debate Contínuo

A Cinemateca Francesa já tinha enfrentado situações semelhantes no passado. Em 2017, cancelou uma retrospetiva dedicada a Jean-Claude Brisseau, condenado por assédio sexual. Desta vez, a instituição encontrou-se novamente no centro de uma tempestade mediática, com críticos divididos entre a defesa da liberdade de expressão artística e a necessidade de abordar a violência histórica contra mulheres no cinema.

Por um lado, sindicatos como o SFA-CGT afirmaram que “filmar e transmitir violações continua a ser condenável”. Por outro, defensores da exibição do filme argumentaram que a obra deveria ser apresentada num contexto que permitisse a discussão informada sobre o seu impacto e significado histórico.

Conclusão

O cancelamento de O Último Tango em Paris na Cinemateca Francesa é mais do que uma decisão administrativa; é um reflexo das tensões em curso na indústria cinematográfica, onde a necessidade de reavaliar práticas passadas colide com a preservação do legado artístico. À medida que o cinema continua a enfrentar os desafios do movimento #MeToo, o caso deste filme serve como um lembrete de que, por vezes, a arte e a ética podem entrar em conflito de maneiras difíceis de resolver.

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