Música, dança e política colidem numa das maiores casas culturais dos Estados Unidos
A decisão de acrescentar o nome de Donald Trump ao Kennedy Center for the Performing Arts continua a provocar ondas de choque no meio artístico norte-americano. Nos últimos dias, mais músicos e companhias de dança cancelaram actuações já programadas, numa reacção directa à reconfiguração política e simbólica de uma das instituições culturais mais emblemáticas dos Estados Unidos.
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Entre os mais recentes cancelamentos está o colectivo de jazz The Cookers, que anunciou que não irá actuar na noite de Passagem de Ano. Embora a banda não tenha mencionado explicitamente a alteração do nome do espaço no seu comunicado oficial, a mensagem deixou pouco espaço para dúvidas quanto ao contexto da decisão. Para o grupo, o jazz nasce da luta e da exigência de liberdade — de pensamento, de expressão e de presença plena — valores que, segundo os músicos, já não sentem poder ser celebrados naquele espaço.
Quando a arte se recusa a entrar em palco
Billy Hart, baterista do grupo, foi mais directo ao afirmar que a mudança de nome “evidentemente” pesou na decisão. A posição dos The Cookers sublinha uma ideia recorrente nas reacções mais recentes: não se trata de um boicote ao público, mas de uma recusa simbólica em legitimar um gesto visto como politicamente abusivo.
Pouco depois, também a companhia Doug Varone and Dancers anunciou o cancelamento de actuações previstas para Abril. Num comunicado público, o grupo explicou que, apesar de discordar da intervenção da Administração Trump na gestão do Kennedy Center, ainda tinha considerado cumprir o compromisso artístico por respeito aos curadores e ao público. Esse equilíbrio quebrou-se, segundo a companhia, no momento em que Donald Trump decidiu renomear a instituição com o seu próprio nome.
Para os bailarinos, esse gesto ultrapassou uma linha simbólica: o Kennedy Center foi criado para honrar John F. Kennedy, um presidente que via as artes como parte essencial da identidade nacional e da diplomacia cultural. Transformar esse legado num monumento pessoal foi, para muitos artistas, inaceitável.
Uma mudança contestada… até legalmente
A controvérsia ganha ainda mais peso por existir um argumento jurídico sólido contra a alteração. O Kennedy Center foi oficialmente designado com esse nome através de um acto do Congresso em 1964, o que levanta dúvidas sobre a legalidade de qualquer mudança sem nova legislação.
Essa questão já chegou aos tribunais. Uma deputada democrata apresentou uma acção judicial para remover o nome de Trump da instituição, defendendo que apenas o Congresso tem autoridade para alterar oficialmente a designação do espaço. O processo decorre, mas a decisão política já produziu efeitos reais: palcos vazios e agendas a desfazer-se.
Um efeito dominó no meio artístico
Antes destes cancelamentos, outros artistas já tinham recuado. Um músico cancelou um concerto de Natal, o que levou o presidente do Kennedy Center a ameaçar com um processo judicial. Outra intérprete cancelou uma actuação prevista para Janeiro. A tendência parece clara: quanto mais explícita se torna a apropriação política da instituição, mais artistas optam por se afastar.
A resposta oficial não tardou. O presidente do Kennedy Center acusou os artistas de serem “activistas políticos” escolhidos por uma anterior liderança “radical”, defendendo que a arte deve ser para todos, independentemente das crenças políticas. Para ele, boicotar actuações em nome da defesa da cultura é uma contradição.
Um novo equilíbrio de poder
A tensão actual não surgiu do nada. Após regressar à presidência, Donald Trump afastou membros do conselho nomeados por administrações democratas anteriores, alterando profundamente o equilíbrio interno da instituição. Com aliados a dominarem o conselho, Trump foi nomeado presidente do Kennedy Center — um gesto sem precedentes que transformou uma casa cultural num campo de batalha ideológico.
O resultado é uma fractura visível entre administração e comunidade artística. Para muitos criadores, a questão já não é apenas política, mas existencial: que significado tem actuar num espaço cultural que passou a ser um símbolo de poder pessoal?
Quando a arte diz “não”
O que está a acontecer no Kennedy Center é mais do que uma polémica momentânea. É um exemplo claro de como decisões simbólicas podem ter consequências práticas e imediatas. Os artistas não estão apenas a reagir a um nome numa fachada — estão a reagir à percepção de que a arte está a ser instrumentalizada.
Num país onde a cultura sempre teve um papel central no debate público, este conflito deixa uma pergunta em aberto: até que ponto uma instituição artística pode sobreviver quando deixa de ser vista como espaço neutro de criação e passa a ser palco de afirmação política?
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Para já, a resposta chega em silêncio — o silêncio de concertos cancelados e palcos vazios.



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