Uma carreira feita de coragem, entrega e intensidade
O cinema norte-americano despede-se de uma das suas intérpretes mais genuínas e imprevisíveis. Sally Kirkland, nome maior do teatro e do cinema independente, morreu aos 84 anos num hospital de cuidados paliativos em Palm Springs. A actriz, que começou como modelo antes de se tornar presença constante nos palcos e ecrãs, deixa uma filmografia marcada pela ousadia e pela vulnerabilidade — duas qualidades que definiam não apenas a sua arte, mas a própria mulher.
A notícia foi confirmada pelo seu representante, Michael Greene, que revelou que Kirkland enfrentava sérios problemas de saúde desde o início do outono, após fraturas múltiplas no pescoço, punho e anca, agravadas por infeções. Amigos e colegas chegaram a criar uma campanha de apoio para custear os tratamentos médicos — um gesto que espelha o carinho e respeito que inspirava na comunidade artística.
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De modelo precoce a actriz de culto
Nascida em Nova Iorque, filha de uma editora de moda da Vogue e da Life Magazine, Sally Kirkland começou a posar aos cinco anos de idade, antes de se formar na American Academy of Dramatic Arts. Foi aluna de Lee Strasberg e Philip Burton, mestres do method acting, e cedo revelou uma entrega sem limites.
A sua carreira começou no teatro experimental dos anos 60, com destaque para a performance ousada em Sweet Eros, de Terrence McNally, onde apareceu totalmente nua — um gesto que a imprensa da época descreveu como “a fronteira entre arte e provocação”.
Em 1964, participou no filme de Andy Warhol 13 Most Beautiful Women, e nos anos seguintes tornou-se presença habitual nas produções off-Broadway. Encenou Shakespeare, interpretando Helena em Sonho de uma Noite de Verão e Miranda em A Tempestade, defendendo até ao fim da vida que “ninguém pode chamar-se actor sem ter passado por Shakespeare”.
“Anna”: o papel que lhe deu o mundo
Depois de dezenas de papéis secundários em filmes como The Way We Were (com Barbra Streisand), The Sting (com Paul Newman e Robert Redford) e JFK (de Oliver Stone), Sally Kirkland teve, finalmente, o seu grande momento com “Anna” (1987), de Yurek Bogayevicz.
No papel de uma actriz checa em declínio que tenta reconstruir a vida nos Estados Unidos, Kirkland ofereceu uma das interpretações mais intensas e comoventes da década, conquistando o Globo de Ouro de Melhor Actriz e uma nomeação ao Óscar.
A crítica do Los Angeles Times foi peremptória:
“Kirkland é uma dessas intérpretes cujo talento era um segredo aberto entre actores, mas um mistério para o público. Com esta performance incandescente, não haverá mais dúvidas sobre quem ela é.”
Na cerimónia dos Óscares, competiu lado a lado com Cher (Moonstruck), Glenn Close (Fatal Attraction), Holly Hunter(Broadcast News) e Meryl Streep (Ironweed) — uma prova do respeito conquistado pela sua entrega absoluta à arte.
Um percurso entre o cinema, a televisão e o activismo
Ao longo das décadas seguintes, Kirkland manteve uma carreira prolífica, alternando entre cinema e televisão. Participou em séries como Criminal Minds, Roseanne e Charlie’s Angels, e em filmes como Revenge (com Kevin Costner), EDtv (de Ron Howard), Bruce Almighty (com Jim Carrey) e Heatwave (com Cicely Tyson).
Mas a actriz também ficou conhecida pelo seu espírito livre e compromisso humanitário. Foi voluntária junto de pessoas com SIDA, cancro e doenças cardíacas, colaborou com a Cruz Vermelha Americana no apoio a sem-abrigo e participou em telemaratonas para hospícios. Também foi uma defensora ativa de prisioneiros e jovens em risco, uma faceta menos visível mas profundamente admirada.
Kirkland era adepta de movimentos espirituais alternativos, ensinando seminários de transformação pessoal e associando-se à Church of the Movement of Spiritual Inner Awareness, dedicada à transcendência da alma.
A actriz que nunca se escondeu
Sally Kirkland nunca temeu o risco. Do teatro experimental à nudez em protestos e causas sociais, o seu corpo e a sua voz foram sempre instrumentos de expressão, arte e convicção. Time Magazine chegou a chamá-la, com humor, “a Isadora Duncan do nudismo teatral”, um título que ela aceitava com orgulho.
A sua carreira teve altos e baixos — chegou a ser alvo de chacota pela participação em Futz (1969), um filme tão desastroso que um crítico do The Guardian o chamou “o pior filme que já vi”. Mas nem isso abalou o espírito da actriz. Kirkland continuou a trabalhar, a ensinar e a inspirar.
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Hoje, ao recordar Sally Kirkland, o que fica não é a nudez nem o escândalo — é a autenticidade feroz de uma mulher que viveu a arte como uma forma de libertação.




