A House of Dynamite: Autenticidade em Jogo — Kathryn Bigelow Defende-Se Face às Críticas do Pentagon

O novo filme de Kathryn Bigelow sobre uma ameaça nuclear desafia o discurso oficial dos EUA sobre defesa antimíssil — e desperta um debate entre realismo cinematográfico, factos militares e a ficção.

Quando vemos um filme sobre a eventualidade mais catastrófica possível — uma bomba nuclear lançada contra o solo americano — podemos perguntar: quão próximo da realidade está este retrato? Em A House of Dynamite, Kathryn Bigelow e o argumentista Noah Oppenheim traçam exactamente esse cenário — e provocam uma forte reacção das autoridades norte-americanas.

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No filme, vemos um míssil intercontinental ser lançado, o sistema de defesa americano lançar interceptores e… falhar. Um dos personagens declara que o sistema só tem cerca de “50 % de hipóteses” de o abater. A Missile Defense Agency (MDA), agência dentro do Pentágono, reagiu com uma nota interna, já obtida pela Bloomberg, afirmando que “os interceptores apresentaram uma taxa de precisão de 100 % nos testes durante mais de uma década”.  

O lado oficial: “Não reflete a realidade”

O Pentágono, via MDA, considera que o filme distorce a realidade. A nota interna realça que, embora o filme possa “ser convincente” e “destinado ao entretenimento”, a realidade dos testes falhos é muito diferente.  Adicionalmente, afirma que o sistema de defesa antimíssil dos EUA continua “um componente crítico da estratégia nacional de defesa”.  

Este tipo de reacção não é inédita: sempre que o cinema aborda temas militares sensíveis, a colaboração ou o desacordo com o Pentágono torna-se central na recepção pública da obra.

O lado dos realizadores: “Queremos realismo, não propaganda”

Por outro lado, Kathryn Bigelow defende que A House of Dynamite segue uma lógica de realismo intenso. Tal como afirmou à The Guardian:

“Para mim, são peças que se inclinam fortemente para o realismo. Convidas o público para algo quase secreto — a sala de controlo do STRATCOM, por exemplo. Queres que seja autêntico e honesto.”  

O argumentista Noah Oppenheim reforça-o:

“Falámos com muitos especialistas em defesa de mísseis… todos em registo. Achamos que o nosso retrato era bem preciso.”  

Para Bigelow, a recusa de consultar directamente o Pentágono foi intencional — sinal de independência criativa.

“Senti que precisávamos de ser mais independentes”, disse.  

Onde está o “realismo” e onde começa a “licença artística”?

  • A favor do realismo: O filme retrata com rigor espaços normalmente inacessíveis — bases de mísseis, centros de comando, salas de crise. Consultores militares e ex-oficiais confirmaram que os cenários, o tempo de reacção (em torno dos 18-30 minutos), e a pressão humana são registados com fidelidade.  
  • Pontos de tensão: Alguns especialistas sugerem que a figura de “50-61 % de interceptação” apresentada no filme é uma simplificação — num contexto real seria necessário prever múltiplos mísseis, enganos (decoys) e ações coordenadas.  

Neste sentido, a crítica do Pentágono baseia-se sobretudo no dado “100 % de testes” que a agência apresentou, enquanto os cineastas sustentam que esses números são fruto de seleções restritas, sob condições controladas, e não são necessariamente representativos de um cenário real de guerra.  

Por que este confronto importa?

Porque o filme ultrapassa o entretenimento: insere-se no debate público sobre defesa nuclear, dissuasão, investimento em mísseis versus diplomacia. O senador Edward Markey escreveu que o filme é “um claro ‘wake-up call’” para a fragilidade da defesa americana.  

Em última análise, a tensão entre Hollywood e o Pentágono revela-se como uma luta por narrativa: quem define “o real” quando se fala de guerra, tecnologia e ameaça nuclear? Bigelow aposta que o cinema pode provocar conversa — e, eventualmente, política. Ela afirmou:

“A cultura tem o potencial de impulsionar a política — e se houver diálogo sobre a proliferação de armas nucleares, isso é música para os meus ouvidos.”  

A House of Dynamite é tanto thriller de alto risco como documento de reflexão. Entre uma agência militar que defende que “temos tudo sob controlo” e cineastas que retratam uma falibilidade sistemática, o filme torna-se campo de batalha de realismo versus narrativa. Independentemente de quem “tem razão”, o impacto está: provocar questionamento. E, talvez, inspirar a reacção que uma superpotência não queria ver — mas que todos precisávamos de confrontar.

🎬 Prestes a Explodir: Kathryn Bigelow regressa com ambição e técnica — mas o filme implode sob o peso da repetição

O muito aguardado regresso da realizadora de Estado de Guerra e 00:30 A Hora Negra é um exercício brilhante de tensão técnica que, infelizmente, se afoga na própria estrutura narrativa.

Há filmes que nos prendem ao ecrã pela tensão e outros que nos afastam pelo cansaço. Prestes a Explodir (A House of Dynamite), o novo trabalho de Kathryn Bigelow, tenta ser os dois — e acaba por cair na segunda categoria. Depois de mais de uma década afastada das câmaras, a realizadora vencedora de Óscar regressa com uma promessa: voltar a explorar a crise existencial e a ameaça da destruição nuclear. E, pelo menos no início, cumpre com mestria.

O filme — disponível na Netflix desde 24 de Outubro — arranca com uma sequência de cortar a respiração: um míssil balístico é detectado a caminho de Chicago, e a Casa Branca tem apenas 19 minutos para reagir. Esse primeiro acto, centrado em Rebecca Ferguson e Anthony Ramos, é puro cinema de alta voltagem. Bigelow domina a urgência e o tempo real como poucos, e cada segundo parece esticar-se num crescendo de nervos e decisões impossíveis.

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A realização é meticulosa, a tensão palpável e a banda sonora de Volker Bertelmann funciona como um coração a bater descontrolado. Neste início, Prestes a Explodir é uma obra-prima em miniatura.

A armadilha da reiteração

Mas então… o filme recomeça.

Literalmente.

Bigelow divide a narrativa em três actos que contam os mesmos 19 minutos, vistos de diferentes perspectivas — primeiro da base militar, depois do comando estratégico e, finalmente, do ponto de vista político. É uma estrutura ousada e, em teoria, fascinante: explorar a banalidade da crise nuclear e o colapso da decisão humana sob pressão. Na prática, porém, torna-se um exercício intelectualmente admirável mas emocionalmente vazio.

A cada repetição, a tensão dissipa-se. Os diálogos são reciclados, as personagens deixam de evoluir e o espectador perde o investimento emocional. O que começou como um thriller de contagem decrescente transforma-se num ensaio académico sobre a impotência burocrática.

Bigelow e o argumentista Noah Oppenheim pretendem mostrar que, perante o apocalipse, a humanidade é incapaz de agir — que a dúvida é o verdadeiro inimigo. A ideia é poderosa, mas o método é esgotante.

Um elenco de luxo em busca de propósito

Nem o elenco estelar — com Idris ElbaJared Harris e Kaitlyn Dever — consegue escapar à repetição. As suas personagens funcionam como peças num tabuleiro de tese, sem arcos emocionais ou decisões transformadoras. Os breves detalhes de vida pessoal (a filha distante, o filho doente, o pedido de casamento adiado) parecem mais notas de rodapé do que motivações humanas.

O resultado é um filme tecnicamente impecável mas emocionalmente árido. A tensão inicial dissolve-se num ciclo estéril de déjà-vu cinematográfico. Bigelow queria mergulhar na mente humana diante do colapso global, mas acabou por criar um labirinto de espelhos onde nada avança e tudo se repete.

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Uma cineasta ainda em plena forma — mas em busca de emoção

Mesmo falhando como narrativa, Prestes a Explodir confirma que Bigelow continua a ser uma mestra da mise-en-scène e do cinema físico. O seu olhar continua feroz, e o domínio do som e da montagem é de uma precisão cirúrgica. O problema é que, quando o filme mais precisa de alma, ela desaparece sob a estrutura rígida da experiência.

No final, resta uma sensação paradoxal: Bigelow acerta no conceito e falha no coração. Prestes a Explodir é, ironicamente, um filme que nunca explode.

Existencialismo e ameaça nuclear: Ozon e Bigelow dominaram a terça-feira em Veneza

O Estrangeiro ganha nova vida pelas mãos de François Ozon

O Festival de Veneza continua a ser palco de estreias de peso. Esta terça-feira, o realizador francês François Ozonapresentou a sua versão de O Estrangeiro, clássico literário de Albert Camus, filmado a preto e branco e protagonizado por Benjamin Voisin e Rebecca Marder.

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A história segue Mersault, um funcionário na Argélia colonial cuja vida sofre uma viragem radical após a morte da mãe. Voisin surpreende ao encarnar um homem apático e recluso, distante das personagens expansivas a que habituou o público.

“Teríamos adorado filmar em Argel, mas as relações entre França e Argélia complicaram essa possibilidade”, admitiu Ozon, que acabou por rodar em Tânger, Marrocos. O cineasta sublinhou que quis oferecer “uma visão atual” desta obra ainda marcada por feridas históricas.

Kathryn Bigelow e a “casa de dinamite”

Do existencialismo ao suspense político, a segunda grande estreia do dia foi assinada por Kathryn Bigelow, realizadora de Estado de Guerra. Em A House of Dynamite, produzido para a Netflix, a cineasta de 73 anos leva o público até à Casa Branca em plena crise nuclear, com um míssil lançado por um agressor desconhecido contra os EUA.

O filme conta com Idris Elba e Rebecca Ferguson nos papéis principais. “Estamos realmente a viver numa casa de dinamite”, alertou Bigelow na conferência de imprensa, sublinhando a urgência de discutir a ameaça das armas nucleares.

Outras propostas do dia: Van Sant e novos talentos

Também na terça-feira, Gus Van Sant apresentou Dead Man’s Wire, um drama baseado na história verídica de Tony Kiritsis, que em desespero tomou como refém o seu credor. Fora de competição, o filme marca o regresso do realizador norte-americano, igualmente com 73 anos, a temas de forte carga social.

Na secção Horizontes, a surpresa veio de Stillz, realizador americano-colombiano conhecido pelos videoclipes de Bad Bunny e Rosalía. A sua primeira longa-metragem, Barrio Triste, transporta o público para a Medellín dos anos 1980, entre violência, fragilidade e a procura de inocência.

Já nas Jornadas dos Autores, o espanhol Gabriel Azorín estreou Anoche conquisté Tebas, sobre um grupo de amigos portugueses que visita termas romanas e acaba por se cruzar com os soldados que as ergueram há séculos.

Uma competição de alto nível

Tanto O Estrangeiro como A House of Dynamite integram a seleção oficial de 21 filmes que disputam o Leão de Ouro, entregue a 6 de setembro. O júri é presidido por Alexander Payne e conta ainda com Fernanda TorresZhao TaoStéphane BrizéMaura DelperoCristian Mungiu e Mohammad Rasoulof.

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Com propostas que vão do existencialismo literário à tensão política contemporânea, Veneza reafirma-se como o festival onde o cinema procura constantemente dialogar com o mundo.