
É uma das imagens mais perturbadoras e controversas da história do cinema: uma jovem de 19 anos, vulnerável e em lágrimas reais, numa cena de violação simulada que não constava do guião original. Falamos, claro, da infame “cena da manteiga” de Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, protagonizado por Marlon Brando e Maria Schneider. A verdade por detrás da rodagem daquela sequência — e o seu impacto profundo e devastador na vida da atriz — é agora contada no filme Maria, de Jessica Palud, com Anamaria Vartolomei no papel principal.
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Mais de cinquenta anos depois, o episódio continua a provocar choque, raiva e desconforto. Não apenas pelo que se vê no ecrã, mas porque a dor era real. Maria Schneider, em múltiplas entrevistas ao longo da sua vida, explicou como foi traída pela equipa do filme, em especial por Bertolucci e Brando. A cena foi decidida entre os dois homens e filmada sem o seu consentimento total. O resultado? Uma atuação extraordinária, mas à custa de um trauma profundo.
“Senti-me violada, tanto pelo Marlon como pelo Bertolucci”
Maria Schneider, que morreu em 2011 vítima de cancro, falou abertamente da sua experiência: “Aquela cena não estava no guião. Foi ideia do Marlon. Só me disseram no dia, e eu senti-me humilhada, violada, emocionalmente devastada.” Ela acrescentou que chorava lágrimas verdadeiras durante a filmagem e que Brando não se desculpou nem a confortou após a cena. Bertolucci, por sua vez, afirmou mais tarde que queria uma reacção “real” da jovem — não como atriz, mas como rapariga, o que agrava ainda mais o escândalo.
Em 2016, quando uma entrevista antiga do realizador veio a público, onde ele admitia com frieza que queria provocar humilhação real, a indignação reacendeu-se. Hollywood, à luz do movimento #MeToo, olhou para trás com horror. Último Tango em Paris, uma obra que durante décadas figurou entre os “clássicos arrojados”, tornou-se símbolo de abuso de poder em nome da arte.
Uma carreira marcada pelo trauma
Apesar do sucesso do filme — que arrecadou 36 milhões de dólares nos EUA e foi um fenómeno de bilheteira na Europa — Maria Schneider recebeu apenas 4 mil dólares. Foi ela quem apareceu nua. Foi ela quem chorou em cena. E foi também ela quem ficou marcada para sempre pela forma como foi tratada.
Durante anos, a atriz lutou contra o vício, depressão e ansiedade. Tentou suicidar-se. Foi internada. A sua carreira nunca recuperou. Embora tenha participado em filmes importantes como The Passenger (1975), ao lado de Jack Nicholson, Maria nunca deixou de ser conhecida como “a rapariga do Último Tango”.
A fama súbita também teve efeitos colaterais: “Fiquei famosa da noite para o dia. As pessoas pensavam que eu era como a personagem. Inventava histórias para os jornalistas, mas isso não era eu… Isso deixou-me louca”, confessou Schneider. A pressão mediática e os julgamentos morais arrastaram-na para uma espiral de autodestruição.
Um novo olhar sobre um velho escândalo
O novo filme Maria, realizado por Jessica Palud e protagonizado por Anamaria Vartolomei e Matt Dillon (como Marlon Brando), pretende dar voz à mulher por trás da personagem. Com base no livro de Vanessa Schneider, prima da atriz, a longa-metragem apresenta um retrato comovente da jovem Maria — filha ilegítima de um ator francês, abandonada pelos pais e, mais tarde, abandonada também pela indústria que a explorou.
Vartolomei, que recria a cena da manteiga no filme, disse em entrevista à BBC que chorou durante a filmagem. “Senti a violência daquilo. A violência física e emocional. A Maria estava sozinha. Não tinha ninguém do seu lado. Só pessoas a observarem, a filmarem… e a não fazerem nada.”
Segundo a realizadora, Maria não pretende condenar com raiva, mas sim expor a estrutura que permitiu este tipo de abusos. “Não quis julgar, mas mostrar o sistema. Há ainda muito trabalho a fazer, mas uma cena como aquela já não aconteceria hoje. E isso é um sinal de mudança.”
Uma herança a reavaliar
O debate em torno de Último Tango em Paris levanta questões mais profundas sobre o cânone cinematográfico e a forma como idolatramos certos filmes — e realizadores — ignorando as consequências para os intérpretes. Como disse a crítica Anna Smith: “Há muito tempo que acredito que o cânone dos grandes filmes precisa de ser reexaminado, porque vem de um lugar profundamente patriarcal.”
Hoje, muitos espectadores — e instituições culturais — olham para Último Tango com outra lente. Não é uma questão de apagar o passado, mas de o compreender com consciência. E de dar finalmente voz àquelas — como Maria Schneider — que, durante demasiado tempo, foram silenciadas.
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Onde ver o filme e o documentário sobre Maria Schneider:
- Último Tango em Paris encontra-se disponível em edições físicas (DVD/Blu-ray) e pontualmente em serviços como MUBI ou Filmin.
- O filme Maria ainda não tem data de estreia em Portugal, mas deverá integrar festivais europeus nos próximos meses.
- O livro de Vanessa Schneider encontra-se traduzido em francês e pode ser encomendado online.
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