
O movimento #MeToo nasceu nos Estados Unidos, mas depressa alastrou a outras indústrias culturais em todo o mundo. Em França, a sua chegada foi lenta — mas quando irrompeu, abalou os alicerces de uma das cinematografias mais prestigiadas do mundo. Abaixo, traçamos uma cronologia dos principais marcos do #MeToo no cinema europeu, com especial destaque para a realidade francesa, onde a atriz Judith Godrèche se tornou o rosto de uma denúncia com impacto real e político.
Outubro 2017 – O Início Global
Após a publicação de reportagens explosivas no New York Times e The New Yorker sobre Harvey Weinstein, milhares de mulheres em todo o mundo começaram a partilhar experiências de abuso sexual com a hashtag #MeToo. Nos EUA, nomes como Ashley Judd, Lupita Nyong’o ou Uma Thurman lideraram a denúncia.
Em França, a reação inicial foi mais contida — e até controversa.
Janeiro 2018 – A Carta das 100
Um grupo de 100 mulheres francesas, incluindo Catherine Deneuve, publicou uma carta aberta no Le Monde criticando os “excessos” do movimento #MeToo e defendendo o “direito dos homens a importunar”. A carta causou indignação a nível internacional, sendo vista por muitos como uma reação conservadora disfarçada de defesa da liberdade sexual.
2019 – Adèle Haenel e a Primeira Grande Denúncia
A atriz Adèle Haenel fez uma denúncia histórica ao acusar o realizador Christophe Ruggia de abuso sexual quando tinha entre 12 e 15 anos. A entrevista, publicada no site Mediapart, marcou uma viragem na perceção pública em França. Pela primeira vez, uma atriz de renome falava abertamente sobre abusos sofridos por um cineasta conhecido — e era levada a sério.
2020 – O Caso Roman Polanski e os Césares em Rebuliço
A atribuição do César de Melhor Realização a Roman Polanski por J’accuse gerou protestos intensos. Polanski é procurado nos EUA por violação de menor desde os anos 70. Várias atrizes abandonaram a cerimónia em sinal de protesto, incluindo Adèle Haenel e Céline Sciamma. Foi um momento simbólico de rutura entre o cinema francês “institucional” e a nova geração.
2022 – Judith Godrèche Rompe o Silêncio
A atriz Judith Godrèche revelou publicamente que teve uma relação com o realizador Benoît Jacquot iniciada quando tinha apenas 14 anos, acusando-o de violação e abuso de poder. Pouco depois, apresentou queixa contra o cineasta Jacques Doillon por factos semelhantes. Estes testemunhos abriram caminho para a criação de uma comissão de inquérito parlamentar na Assembleia Nacional francesa.
Fevereiro 2024 – Um Discurso-Chave nos Césares
Judith Godrèche subiu ao palco da cerimónia dos Césares 2024 e fez um discurso emocional e acusatório, pedindo uma mudança radical na forma como o cinema francês lida com o abuso. O momento foi amplamente partilhado nas redes sociais e contribuiu para a aceleração de medidas legislativas.
Abril 2025 – Relatório do Parlamento Francês
O inquérito parlamentar sobre violência sexual no setor cultural francês concluiu que o problema é sistémico. Foram propostas 86 medidas concretas, incluindo:
- Regras para proteger menores
- Fiscalização dos castings
- Formação obrigatória em ética profissional
- Canais de denúncia independentes
Judith Godrèche, após ler o relatório, voltou a insistir: “Agora ninguém pode fingir que não sabia.”
Em paralelo: Outras Vozes na Europa
- Itália: O caso do ator e realizador Fausto Brizzi, acusado por várias mulheres de assédio, teve forte repercussão mediática, embora sem acusações formais.
- Reino Unido: O escândalo com o ator e comediante Noel Clarke, acusado de abuso por mais de 20 mulheres, gerou enorme debate sobre a impunidade no setor televisivo britânico.
- Espanha: O caso Rubiales, apesar de se passar no desporto, teve impacto cultural, impulsionando debates sobre o consentimento e abuso de poder.
Conclusão: O Cinema Está (Finalmente) a Ouvir?
O movimento #MeToo no cinema europeu ainda enfrenta resistência — por vezes subtil, outras vezes declarada. Mas a verdade é que mudanças concretas começam a acontecer, e figuras como Judith Godrèche, Adèle Haenel ou Céline Sciamma estão a reescrever as regras do silêncio.
Que venha um cinema onde talento não seja moeda de troca pelo silêncio. E onde os aplausos não abafem os gritos.
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